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A Dama do Intendente: “Naquele quarto, naquelas noites, tudo é permitido”

A Dama do Intendente, adaptação do texto A Dama da Lapa de Marcelo Pedreira pela Companhia de Actores, estreou no passado dia 22 de novembro, no Teatro Municipal Amélia Rey Colaço em Algés.

Em palco até dia 14 de dezembro, todas as sextas e sábados às 21h30, A Dama do Intendente faz a apologia do amor e incita-nos a tomar as rédeas da vida, para que deixemos de ser marionetes no nosso próprio corpo e possamos sentir tudo aquilo a que temos direito, escapando ao aturdimento de quem falhou ou perdeu pelo caminho.

Numa sala de atmosfera intimista, pequena e acolhedora, a casa foi enchendo, com os atores já em cena – o Homem encostado à parede esquerda e a Mulher sentada a maquilhar-se na outra ponta – até o espetáculo começar, de forma natural, quando o silêncio se instalou e o público se concentrou no cenário maioritariamente em tons castanhos e verdes.

O Homem aparece-nos aturdido, como se estivesse numa espécie de limbo, à espera que forças obscuras o recolham. A Mulher, consciente e provocadora, sedu-lo e leva-o até aos seus aposentos, onde se inicia uma relação indefinida, marcada por um conflito dramático (desfocado/desperta, amor/ódio). Uma peça tortuosa e intensa que nos prende a atenção, tanto pela excelente interpretação, com os dois atores a brilharem equitativamente, como pelos saltos no tempo que nos deixam confusos e curiosos, levando-nos a reparar nos estranhos pormenores escondidos no cenário e no figurino e a apreciar a poética do texto, que é tudo menos vulgar, e encaixa perfeitamente com Jorge Palma e a incrível iluminação teatral.

Findo o espetáculo, temos direito a sangria, snacks e à companhia do encenador António Terra, a atriz Sandra Roque e o ator Tiago Fernandes. Como em noites de estreia a agitação é visível, houve pouco tempo para conversas longas, mas ficou a promessa de uma entrevista, que o Espalha Factos tem o prazer de partilhar.

EspalhCDA - A Dama do Intendente, Sandra Roque e Tiago Fernandes 3a Factos: A Companhia de Actores foi fundada em 2004. De onde nasceu a ideia de criar este Grupo de Teatro e Associação Cultural?

António Terra: Nasceu do desejo de trabalhar em grupo. Na altura eu estava a dar aulas de teatro e workshops e fui conhecendo pessoas com quem tinha uma identificação artística. Fiz alguns convites […]

Sandra Roque: [risos] Foi um desenrolar de felizes acontecimentos! [sorri] Conheci o António em 2000, quando foi meu professor. Em 2001, desafiei um colega de turma – o João Pedro Ascenso, também ator da CDA – para apresentar na escola a peça Loucos por Amor de Sam Shepard e ele concordou em convidarmos o António para nos dirigir. Depressa nos tornámos cúmplices e companheiros de sonhos. Nesse ano, o António reuniu um grupo de alunos (que além de nós dois incluía o Bruno Nogueira, a Inês Castel-Branco, a Margarida Vila-Nova, o Miguel Damião, o Miguel Costa, entre outros não conhecidos do público) para trabalhar diária e intensamente num processo que se revelou muito enriquecedor para todos nós.

Já depois de terminado, mantinha-se no António e em mim o desejo de continuar a exercitar as ferramentas de atores/criadores. Em 2003 voltámos a trabalhar juntos na peça Mão na luva, o que acalentou essa vontade. Foi então que ele me falou em criar um grupo de trabalho com quem pudesse reunir regularmente e desenvolver uma linguagem cénica própria. Falámos com algumas pessoas que pensámos terem interesse e disponibilidade e arregaçámos as mangas! Durante anos esgotámo-nos a trabalhar, nada mais existia que não a Companhia. Não sendo uma estrutura financiada, era isso ou a morte! [risos]. Quase dez anos depois (já com diversas alterações na equipa), e fundamentalmente graças ao António, ainda aqui estamos!

AT: [A fundação da CDA] foi um momento muito especial para todos nós.

EF: A CDA já foi reconhecida e premiada. Que balanço se faz depois de 10 anos?

AT: Naturalmente positivo. São 10 anos que parecem 20. Muito trabalho, conquistas, alegrias e crescimento. Tendo também o outro lado da moeda. Perdas e tristezas. A CDA é fruto de muito esforço de pessoas que acreditaram e acreditam na força de sonhar. Algumas já não estão ao nosso lado e outras até hoje fazem mover a engrenagem. Como escreveu Jorge Palma: “A gente vai continuar…”

EF: Porquê a mudança de nome, de A Dama da Lapa para A Dama do Intendente?

AT: O Bairro da Lapa no Rio de Janeiro é o berço da boémia carioca. Em tempos foi um lugar decadente com vida noturna perigosa, prostituição, tráfico e hoje em dia é um lugar acessível a todos. Por isso, e para não causar confusão com o Bairro da Lapa de Lisboa, que tem outro contexto social, aproximámos ao universo do bairro do Intendente.

EF: Porquê encenar a A Dama do Intendente?

AT: Pelo desafio do texto, das personagens e pela cedência dos direitos de autor, por parte do Marcelo Pedreira, que facilitou a nossa decisão.

EF: Como foi o processo de criação de A Dama do Intendente?

SR: Foi sobretudo muito investido. Em tempo, fisicamente, emocionalmente e mesmo financeiramente. O texto é tudo menos simples e o autor tinha, inclusivamente, duas versões de A Dama da Lapa. Após bastantes leituras de ambas, acabámos por propor a nossa adaptação. […] fomos experimentando e propondo abordagens, por vezes diametralmente opostas. Foi e continua a ser um grande desafio que, como todos, trouxe frustrações mas, com elas, descobertas e tanta coisa boa. Quanto à pesquisa, e falando por mim, envolve sempre a parte de identificação com a personagem, de perceber o que das minhas experiências pode ser usado como “gatilho” de motivações. Mas como a forma de vida da Dama é, nalguns aspectos, bem diferente da minha, além do recurso à imaginação e de algumas trocas de ideias com o autor, optei por ir ao Intendente (o bairro que considerámos mais se assemelhar com o bairro da Lapa, no Rio de Janeiro), observar o ambiente e falar com prostitutas e clientes. Também houve músicas, leituras, filmes, que ajudaram a mergulhar no universo da peça.CDA - A Dama do Intendente, Tiago Fernandes

Tiago Fernandes: O processo de criação foi bastante duro. Tivemos várias fases ao longo do tempo, mas a proposta do António foi a mesma desde o início: criar personagens num registo de intensidade diferente do real, mas com uma base emocional verossímil. […] A escolha deste texto, para mim, foi imediata. A escrita do Marcelo Pedreira tocou-me profundamente e de imediato comecei a criar imagens e possibilidades na minha cabeça. Depois, fomos falando entre nós e com o próprio Marcelo, que foi de uma generosidade desarmante. […] O encontro de visões, a pesquisa em grupo e o caminhar rumo a um destino que ainda não se conhece é sempre o maior desafio. […] O que me deu mais prazer foi estar num processo de trabalho onde tudo era permitido. Qualquer registo encontrado, enquanto proposta, era legítimo. O que não quer dizer que todos eles sejam adotados para o espetáculo.

Além disso, trabalhar com o António Terra e a Sandra Roque é muito especial para mim. Não esquecendo a importância da Natália Vieira e do Alexander Gerner no início do meu percurso, foi com o António e com a Sandra que o bichinho do teatro virou este monstro que todos os dias procuro alimentar! Foi também com eles que me iniciei como profissional, em 2006, quando me convidaram para integrar a Companhia de Actores, onde estou desde então. Em relação à escolha das músicas (o António e a Sandra vão-se rir por vocês me terem feito esta pergunta), julgo que só poderiam ser as que são, com o autor que é: Jorge Palma. Durante o processo, o António pediu que trouxéssemos músicas que julgássemos próximas do universo que nos propúnhamos trabalhar. Imediatamente peguei nos meus CDs de Jorge Palma. As suas letras e o próprio percurso que se conhece dele têm, em minha opinião, tudo a ver com esta peça. Depois, o António ouviu os CDs todos que lhe trouxe, aceitou algumas das músicas que eu tinha proposto e escolheu outras que também cabem nesta peça de forma incrível. Parece que foram feitas de propósito para este texto.

AT: Foi um processo intenso e sem rede para mim e para os atores. A estrutura narrativa da peça (escolha do autor) não apresenta um tempo linear. São cenas de um “qualquer dia e qualquer hora” na vida dos personagens. Uma descontinuidade e ao mesmo tempo uma possibilidade do “dia seguinte” na vida e no dilema do “homem”. É um processo que passa por várias fases de ânimo e realização. No nosso processo tivemos durante o “percurso criativo” na mesma intensidade, a dor e o prazer. A seleção musical (Jorge Palma) foi desde o começo um porto seguro para nós. Eram aquelas músicas e aquelas letras. Mérito do Tiago Fernandes (ator), que chegou ao ensaio com os CDs do Jorge e passei dias, semanas a ouvir a obra do autor. Perfeito!

EF: Quem é, na verdade, esta Mulher? E este Homem?

AT: São todos os seres insatisfeitos, inconclusos, inadaptáveis na nossa divina comédia humana. Seres com uma potência de vida, que não cabem em si mesmos, que buscam o inacessível. Que poderiam ter sido qualquer coisa, até um rei.

SR: Boa pergunta. ParaCDA - A Dama do Intendente, Sandra Roque e Tiago Fernandes 2 mim, é uma mulher desiludida com a sua própria história, que já pensou, ela própria, se valeria a pena continuar a viver, mas sonha em poder abraçar mais da vida e acabou por encontrar uma forma de aceitar as coisas como elas são, de se aceitar. Concilia as suas dores, as suas imperfeições, desvios, culpas, a sua incurabilidade (palavra do autor), com aquilo que a faz sentir viva, com aquilo que, por muito torto que seja, a faz sentir, mesmo que temporariamente, que importa alguma coisa para alguém. E mantém, ainda que a medo e sob o limiar da consciência, a esperança que o amor vivido com alguém que também a aceite por inteiro, lhe traga a paz, seja a sua cura.

TF: Este Homem não tem nome por um motivo. E está identificado com “H” maiúsculo pela mesma razão. Este Homem é qualquer um de nós. É uma personagem que vive a angústia de não poder viver tudo quanto queria. E todos nós, de uma maneira ou de outra, em maior ou menor medida, padecemos desse mal… acho que lhe chamam “natureza humana”, que é um mal e uma bênção que trazemos conosco. O “sentimento Variações” de “só estou bem onde não estou” é uma das forças motrizes desta personagem. A incapacidade de abraçar o mundo fá-lo querer desistir, mas a eterna dúvida sobre o que estará do outro lado, fá-lo hesitar e continuar a tentar. Por vezes, esse estímulo esmorece, mas logo algo acontece que aguça a curiosidade perdida e suscita uma dúvida salvadora. No fundo, a capacidade de aceitar as coisas como elas são e, simultaneamente, querer continuar a querer algo mais é o que o faz continuar… até ao dia.

EF: O Homem diz que por vezes se sente um voyeur. A voz off ajuda a criar um sentimento de voyeurismo que se tem ao assistir a um espetáculo tão pessoal num espaço que, por não ser muito grande, imprime uma atmosfera intimista… Foi propositado?

TF: É um ponto muito interessante. Na gravação da voz off procurámos atingir um registo que fosse coerente com a energia que queríamos instalar na peça, complementando-a. A ligação de uma voz off à noção de voyeurismo é bastante curiosa. Vejo os momentos de voz off como momentos narrativos, claro. E um narrador é, na verdade, um voyeur, pelo que todas estas ideias, aliadas às características intimistas do espaço, acabam por convergir e contribuir para essa sensação de observação.

AT: Foi natural. O texto sugere a voz off, o espaço é a nossa casa e a intimidade foi o desafio criativo. Resultou.

EF: O Homem parece um ser aturdido. Como se não estivesse realmente desperto, mas se encontrasse num limbo…

TF: Ele próprio o reconhece… alguém um dia lhe disse que ele não consegue distinguir a ficção da realidade. E está num limbo, sim. Basta estar vivo para que isso aconteça. A dúvida, a busca, as próprias certezas, por mais paradoxal que possa parecer, são uma fonte de desequilíbrio… o mesmo desequilíbrio que é necessário para que a vida continue interessante e agradavelmente desesperante.

EF: Na cena em que o Homem lhe conta que se quer matar, parece despertar nela um instinto protetor…

SR: Não sei exatamente se era esse o ponto fulcral na mente do Marcelo Pedreira ao escrever essa cena, mas o bom das histórias é que cada um as pode interpretar pessoalmente. Na minha abordagem, ela identifica-se com algumas das suas angústias. Por isso e pela forma peculiar como ele se expressa, como parece olhar a vida, e a morte e pelo mistério que o envolve (além duma atração carnal que vai além de qualquer compreensão lógica), este homem desperta nela um interesse especial. E ela acredita poder fazer algo por ele. Só precisa da oportunidade. Se não para fazê-lo voltar a sentir “tesão” pela vida (paCDA - A Dama do Intendente, Sandra Roque e Tiago Fernandes 1sso o sentido brasileiro do termo), então que seja no nosso muito português sentido literal, ainda que apenas por uma noite. Ser capaz de lhe proporcionar prazer é bom para ele e motivo de orgulho para ela. Ser a sua última mulher, é algo importante que também a valida. À medida que se envolvem, aceitando e jogando com as loucuras um do outro, ele pode muito bem ser a materialização da tal cura por que espera e, talvez egoisticamente, precisa de o manter por perto, evitar que opte pela morte…

AT: Protetor, não sei. Naquele momento nada mais importa para eles. Só o aqui e o agora. Só os impulsos vitais. O amanhã é agora. Ela reage, não pensa.

O Espalha Factos vai dar-te a conhecer, num segundo artigo, o resto da conversa com o encenador António Terra, a atriz Sandra Roque e o ator Tiago Fernandes. Fica atento!

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