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Um Fim do Mundo 1

Entrevista: Pedro Pinho – realizador de ‘Um Fim do Mundo’

Composto por uma trilogia de filmes com personagens que se cruzam, Um Fim do Mundo, Cama de Gato e Bela Vista fazem parte de um projecto único até à data em Portugal e são a prova de que existe uma nova geração de cineastas cheios de vontade em mostrar serviço. O ponto que une os três filmes é, nada menos, do que o bairro da Bela Vista, popular pelas altercações que ocasionalmente têm destaque na comunicação social.

Numa tentativa de “lavar a cara” a uma comunidade profundamente estigmatizada, Pedro Pinho, Filipa Reis e João Miller Guerra organizaram-se em conjunto com a Câmara Municipal de Setúbal e deram vida a este aliciante trabalho cinematográfico. Para perceber um pouco sobre a feitura deste filmes o Espalha-Factos falou com Pedro Pinho no jardim do Príncipe Real e com João Miller Guerra nos escritórios da Vende-se Filmes.

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Entrevista a Pedro Pinho:

Porquê a Bela Vista?
Pedro Pinho (P.P.): Este projecto inicialmente foi pensado tendo em vista um grupo de adolescentes de classe média. Aconteceu a Câmara Municipal de Setúbal abrir um edital para fazer filmes sobre a Bela Vista a que eu concorri com a Filipa, e ganhamos e acabou por ser feito na Bela Vista, por questões alheias ao filme inicialmente. O projecto inicial já era para Setúbal e Tróia mas depois agradou-me essa possibilidade de ser na Bela Vista, de falar num bairro tido como problemático e que está em permanente confronto com o mundo. E essa ideia de confronto que não está presente, mas latente, agradou-me.

E como é que chega a este projecto de trilogia com os outros dois realizadores?
P.P.: A Filipa sabia que eu tinha um projecto escrito, sobre jovens em Setúbal. O projecto anterior deles também era num bairro com jovens na Amadora e ela propôs-me realizar e escrever um filme para eles e depois fazer um documentário. Discutimos a ideia do documentário, mas não estive presente na realização. Tivemos primeiro um processo de pesquisa em conjunto, mudei-me para Setúbal durante três meses antes da rodagem. Durante esse tempo andámos pelo bairro a conhecer pessoas e o local e a fazer um longo exercício de casting para os filmes.

Fale-me um pouco mais desse casting. Os filmes têm vários actores em comum, como é que escolheram os actores?
P.P.: Fizemos várias experiências. As primeiras abordagens correram bastante mal. Contactamos a escola da Bela Vista, falámos com os professores que nos fizeram chegar às pessoas, mas como esse casting foi durante as aulas, os alunos iam ter connosco às reuniões mais por uma espécie de obrigação, porque eram enquadradas pela escola e eles olhavam para nós como se fôssemos assistentes sociais. Acabámos por abdicar dessa abordagem e pedimos a uma associação local uma sala e imprimimos umas folhas A4 que distribuímos pelo bairro a anunciar um casting de cinema. E houve uma maior adesão.

É interessante verificar que indo às escolas directamente não conseguiram bons resultados, mas na rua as pessoas aderiram mais. Acha que há uma alguma razão para isso?
P.P.: Sim, acho que a escola, sendo uma instituição pesada tem um papel no conflito existente no bairro, não especialmente neste, mas em todos. E todos os alunos adolescentes guardam para a escola um papel de obrigação e o prazer parece está fora dessa instituição. Ou está dentro, mas apenas nos intervalos.

É um problema cultural português?
P.P.: Sim, mas não acho que seja só dos portugueses. Terá mais a ver com a estrutura da escola, com o que se ensina ali, porquê aquilo e não outra coisa. Como é que se acede e se organiza a vida das pessoas. E isso foi pensado a 100 anos, não tem nada a ver com a realidade de hoje. O como é que se faz, o que se estuda, como se estuda, em que salas, em que cadeiras, qual é a relação entre quem passa o conhecimento e quem recebe. Tudo isso é igual há 100 anos, e o resto do mundo mudou brutalmente e as pessoas têm acesso a informação que não tinham na altura. O modelo actualmente não parece fazer muito sentido.

É a sua primeira longa-metragem?
P.P.: Tecnicamente sim. Inicialmente era para ser uma curta, e durante o processo de escrita eu percebi que ia ser uma curta bastante longa mas só na montagem é que percebi que tinha mais do que 60 minutos. É uma longa-metragem, mas eu pensei-a e escrevi-a como uma curta, aliás as filmagens duraram apenas 10 dias. Prefiro dizer que é a minha primeira média do que longa-metragem.

Qual foi o seu percurso até chegar aqui?
P.P.: Estudei na escola de cinema em Lisboa, depois estudei em Paris, e realizei algumas curtas-metragens de ficção. Ainda fiz um curso de realização de cinema organizado pela Gulbenkian, onde conclui os meus estudos, em 2005. Tive entretanto um curta a passar no IndieLisboa, e projectei um documentário entre 2005 e 2008 (Bab Sebta) que ganhou o DocLisboa e o Festival de Documentário de Belo Horizonte, e ainda um prémio no FiD Marseille. Foi bastante bem sucedido, só não estreou em sala, porque cá em Portugal, documentário em sala não é fácil.

Falando mais em pormenor sobre Um Fim do Mundo, porquê o preto e branco?
P.P.: Sempre quis fazer um projecto filmado a preto e branco e isso tem a ver com as minhas referências cinematográficas. O que eu queria fazer neste projecto específico, ou seja, estar com uma proximidade muito grande aos actores e às pessoas que estão a ser filmadas a partir de um dispositivo ficcional mínimo, perceber onde é que surge a verdade das personagens. E os filmes onde vi fazer isso, são a preto e branco.

E quais são os filmes que o marcaram?
P.P.: Podia dar vários, mas foi a Nouvelle Vague, onde para fazer filmes não era preciso um aparato gigante, bastava uma câmara, som, uma história mínima e pessoas. E descobre-se a verdade que há nas pessoas, nos olhares, nas conversas, nas relações.

O press release fala em “deambulação minimalista”…
P.P.: Sim, no sentido em que não há grandes intrigas rocambolescas, uma história muito complexa ou tiros, assaltos ou explosões. Parece que não se passa quase nada, estamos ali a observar a natureza dos olhares, das proximidades e das distâncias entre pessoas. É nesse sentido que acho que é minimalista. Depois o preto e branco é um tratamento estético de trabalhar essa “redução ao essencial”. Esquece a cor, vamos concentrarmo-nos no mínimo e isso é oferecido pelo preto e branco.

Houve uma tentativa consciente de não vitimizar os personagens por serem de um bairro social?
P.P.: Sim, a visão do coitadinho e do pobrezinho não é coisa que eu acarinhe. Acho que em todos os contextos há pessoas iguais a outras pessoas, que comem, bebem, namoram, zangam-se, e isso é que me interessa. O que eu quis reter daquele bairro é mais um confronto com o qual eu me identifico do que uma vitimização, ou seja, há uma vida que se passa fora dali em termos de acesso à cultura, ao dinheiro, a bens de consumos que são desejados por todos os jovens de todo o lado, que não é igual ali e fora. E isso provoca um confronto com o qual eu me identifico. E personagens que carregam esse confronto interessam-me. Essa é a parte que me interessa no bairro social, o resto não.

Podes ler a entrevista ao realizador João Miller Guerra, aqui.

Entrevista por Paulo Figueiredo

*Por opção do autor, este artigo foi escrito segundo as normas do Acordo Ortográfico de 1945