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A Música na 7ª Arte: Os Sapatos Vermelhos

O Espalha-Factos convida-vos, novamente, a participar na aventura da Música na 7ª Arte. O objetivo é encontrar e debater momentos em que som e imagem se mesclam perfeitamente. Uma demanda pela magia que está dispersa em incontáveis cenas produzidas ao longo dos tempos está prestes a recomeçar!

Nas duas últimas ocasiões, as cenas tratadas eram medianamente conhecidas por parte do público contemporâneo: mas hoje, a busca será mais a fundo. Abrimos o antigo baú de memórias ancestrais e trataremos da verdadeira joia da coroa do cinema britânico. Trata-se do intemporal Os Sapatos Vermelhos, de Michael Powell e Emeric Pressburger.

Realizado em 1948, o filme conta a história de um bailado, baseado na fábula homónima de Hans Christian Andersen, e nos artistas que lhe dão vida: Victoria Page (Moira Shearer), Julian Craster (Marius Goring) e Boris Lermontov (Anton Walbrook).

Embora não tenha sido um êxito tremendo de bilheteira, agitou suficientemente o mundo para arrecadar dois Oscars nas categorias de melhor direção de arte e melhor banda sonora, influenciando toda uma nova geração de realizadores. Frequentemente citado por Martin Scorsese, Brian DePalma, entre outros, como um dos melhores filmes de todos os tempos, este clássico revolucionou a maneira como a edição, música, dança e até a cor eram utilizadas na 7ª arte.

E no cerne de toda esta magnificência está um bailado hipnótico, onde a prestidigitação milagrosa da cinematografia, representação e dança ribombam pelos quatro cantos do ecrã. A música foi composta por Brian Easdale, colaborador habitual da dupla de realizadores.

Vicky precisa de dançar como o comum ser humano precisa de oxigénio. Boris Lermontov é o “dono do palco” e, para nele “respirar”, a ninfa de cabelos vermelhos teve que deixar a alma como garantia. Para o austero Lermontov não existe amor senão o amor à arte, sugando toda e qualquer réstia de sentimentalidade humana das suas primas-bailarinas: Victoria Page é só mais uma.

Mas quem tão fervorosamente deseja o clímax artístico, acaba também por desejar vê-lo replicado na vida “real”: daí a origem do conflito.

Todo o filme é um exemplo de “arte imitando a vida” e de “vida imitando a arte”, sendo que a fronteira entre ambas nunca fica completamente explicita: fundem-se num arco-íris medonho e rodopiante que dura 15 minutos, mas que parece encapsular todos os possíveis significados das quase duas horas e meia de filme.

A protagonista do bailado fica maravilhada com os sapatos vermelhos, desconhecendo que o pérfido sapateiro embutiu-lhes o condão de nunca pararem de dançar. “E qual é o mal de dançar para sempre?”, poderia a rapariguinha ter pensado. Quando se está de tal forma infetado pelo desejo de exprimir tão profunda paixão, tudo o resto é inconsequente: até o namorado.

E então dança: dança pelas cidades e pelos vales… Dança com o mundo e com o inferno… Evocando um inegável cariz sexual, ela dança com vários homens à frente do namorado, só para mais tarde se arrepender e começar a imaginá-lo corporalizado num jornal velho.

Os sapatos vermelhos não a vão deixar parar…

No mais breve dos instantes, a imaginação da bailarina cria um paralelismo entre o sapateiro e os homens da sua vida: e a partir daí o público sabe. Sabe que no momento em que aqueles sapatos forem desatados do corpo da rapariga ela deixa de existir.

Mas os sapatos vermelhos… Eles ainda lá estão: nas mãos do seu criador. Porque embora ame aquilo que faz, Victoria Page é só mais uma. A cena está aqui.