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Luís Miguel Cintra: «E o que quer que diga sobre 42 anos de vida?»

Luís Miguel Cintra, ator e encenador português, fundou o Teatro da Cornucópia com Jorge Silva Melo, em 1973. No presente ano será distinguido com o Prémio Carreira 2015 pela Academia Portuguesa de Cinema. Em cena, até dia 15 de março, está Lisboa Famosa (Portuguesa e Milagrosa), a mais recente peça por si encenada. O Espalha-Factos não podia deixar passar a oportunidade de entrevistar uma das mais conceituadas referências do teatro português.

«E não foi tanto um percurso, como um comboio que viesse do nascimento com destino à morte ou à vida eterna.»

Espalha-Factos: Há 47 anos que se iniciou no Teatro, no grupo da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Como classifica o seu percurso até ao momento?

Luís Miguel Cintra: Gostava mais que soubessem qual foi do que ter de inventar qualquer adjetivo que substitua os factos. Posso dizer que foi longo? Não. E não foi tanto um percurso, como um comboio que viesse do nascimento com destino à morte ou à vida eterna. Tem sido mais como um puzzle.

EF: Frequentou Filologia Românica. Em que medida esse conhecimento contribui ou poderá contribuir para o seu trabalho como encenador?

LMC: Foi decisivo, pelos instrumentos de análise literária que o curso me ajudou a ter, pelos livros que me fez ler, pelos professores que conheci, mas sobretudo pelo encontro com outros alunos que me ajudaram a crescer e me deram muita coisa boa com o seu convívio e, muito concretamente, me ajudaram a fazer o primeiro espetáculo, com o próprio grupo universitário no Anfiteatro 1 da Faculdade de Letras.

EF: Por falar em letras, também é declamador de poesia. Poetas de eleição?

LMC: Camões, Pessoa, Ruy Belo, Sophia, Luiza Neto Jorge.

«Tenho sempre tentado estar longe dos problemas burocráticos. São o contrário do que gosto na vida: imaginação, alegria, simplicidade.»

 

EF: Quanto à Cornucópia, foi fundada em 1973. Já passaram 42 anos: qual o balanço até agora?

LMC: Balanço? Isso não é da linguagem da burocracia? Tenho sempre tentado estar longe dos problemas burocráticos. São o contrário do que gosto na vida: imaginação, alegria, simplicidade. Só são necessários porque a sociedade se desumanizou. E o que quer que diga sobre 42 anos de vida? Que tiveram saldo positivo ou negativo? Acha que se eu dissesse: negativo, negativo, era verdade?

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EF: Não, acredito que não era verdade. E, porquê «Cornucópia»?

LMC: Porque era o nome de uma personagem do Anfitrião ou Júpiter e Alcmena de António José da Silva, a primeira peça que encenei. A Cornucópia era uma velha corcunda, criada de Alcmena. Mais suculenta razão, mas no fundo menos verdadeira, é ser um símbolo de abundância como a Companhia que fundei com o Jorge Silva Melo, de coisas boas e más, ou seja, muita fruta, como se costuma dizer.

EF: Participa como ator em quase todos os espectáculos que encena. Como é a experiência de desempenhar não um, mas dois papéis, um dos quais muito importante para a construção inicial da peça?

LMC: É fantástica, mas receio que não a possa aconselhar aos que gostam de desportos radicais. Não basta ter coragem e atirar-se para a frente. É preciso trabalhar muito porque são dois trabalhos. A soma é fácil de fazer. E a acumulação não se ensina. Mas os grandes escritores de teatro foram muitas vezes as duas coisas. É isso: trabalhar muito para não ficar nada de palpável a não ser a memória. Um escritor sempre deixa palavras escritas. É preciso amar muito o que normalmente se considera o pior dos males: a sua brevidade. Vivemos mais vezes no duplo emprego.

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EF: Atualmente está em cena a peça Lisboa Famosa (Portuguesa e Milagrosa), que fala da vida social da cidade tal como as cenas de Aristófanes em A Cidade, que também encenou. O processo criativo foi parecido?

LMC: Não. Aqui foi mais profundo, mais filosófico e muito maior atenção e paciência este texto pediu. É um texto em português antigo.

EF: Quais foram as grandes dificuldades na encenação? E mesmo, depois em palco, como ator?SONY DSC

LMC: O texto ser antigo e eu pedir a todos que o falassem como se estivessem a falar a língua de hoje. O efeito é quase indispensável, perceberem-se as cenas, mesmo que se não percebam as palavras.

EF: Qual considera ser então o grande trunfo desta nova produção?

LMC: A qualidade surpreendente do trabalho dos atores mais jovens e o jogo das múltiplas e complexas alusões ao nosso tempo. E ainda uma coisa bem lisboeta e portuguesa: a melancolia, o fado.

EF: Se tivesse de escolher uma personagem preferida, qual seria?

LMC: O São Pedro dos Evangelhos se fosse homem e Maria Madalena se fosse mulher: as duas personagens pecadoras. E como insígnias seria a sardinha para São Pedro e para ela um manjerico.

«Saudinha, saudinha é que é preciso. Dinheirinho não peço, diz que não traz felicidade.»

 

EF: E na estreia, dia 12 de fevereiro, como se sentiu?

LMC: Porquê? Disseram-lhe que eu me tinha sentido mal? Senti-me bem, obrigado. A estreia conta pouco para mim.

EF: O que espera então para os próximos espectáculos?

LMC: Disse-me uma vez a Dona Mariana Rey Monteiro quando era novo e a fui cumprimentar ao camarim, no final do espetáculo: Saudinha, saudinha é que é preciso. Dinheirinho não peço, diz que não traz felicidade. Sei lá. Mas diz-se que vox do povo é voz de Deus.