Para uma das guitarras mais icónicas de Portugal, seja na eletricidade dos Dead Combo ou no classicismo do trabalho a solo, Tó Trips continua a falar do seu instrumento com uma humildade de eterno aprendiz.
Numa esplanada, a aproveitar o sol matinal lisboeta, falámos sobre a construção do seu novo álbum, Guitarra Makaka – Danças a um Deus Desconhecido, da sua carreira que já conta três décadas, e da ambição de nunca deixar de aprender novas formas de criar música.
Já és músico há 30 anos e passaste por fases bastante distintas ao longo da tua carreira. Há algum período que guardes com mais saudade?
Todos os períodos conforme as idades fazem sentido, não é? O que eu tento é nunca arrepender-me de nada que tenha feito. Eu não voltava atrás, e nem é porque tenha sido mau, porque foi bom; mas foi bom naquela altura. Cada altura tem as suas coisas boas e tem as coisas que são apropriadas para a altura.
Ao longo dos anos foste evoluindo com a música portuguesa. Olhando para trás, que diferenças é que encontras hoje em dia?
Epá, eu acho que uma das coisas que as bandas de gerações mais novas têm são identidades muito próprias, ou seja, apesar de terem influências disto e daquilo, não são cópias de bandas lá de fora, que era o que se passava muito nos anos 90. E depois também acho que o facto de haver mais informação e as pessoas terem mais acesso a… Sei lá, hoje vais ao Spotify e ouves tudo e mais alguma coisa. Antes, nos anos 80, um gajo para ter um disco dos Ramones tinha de mandar vir pelo amigo que ia a Londres! Hoje em dia a malta mais nova tem mais acesso e se calhar é uma questão de informação, das pessoas conhecerem mais música, não é?
O Tó Trips de 20 anos e os seus colegas de banda alguma vez imaginavam o sucesso que iam ter?
Eu não gosto muito da palavra sucesso, acho que isso consegue-se com trabalho, seja na música, seja em qualquer coisa que vocês façam. Se acreditarem e gostarem, acho que vão ter sucesso, aqui e em qualquer parte do mundo. É o que eu tento ensinar aos meus filhos.
O som que fazias nos Lulu Blind há 20 anos é completamente diferente do som deste álbum. Consideras-te também uma pessoa completamente diferente agora?
Tinha outra idade, não é…? Não tinha filhos. Pensava de outra maneira. Era um tipo mais limitado na música, ouvia só aquele tipo de género de música: hardcore, trash metal ou rock. Não era um gajo eclético… Tinha uma vantagem: era mais novo!
E não há nenhum ponto em que olhas para trás e pensas “ainda sou assim”?
Há coisas que se mantêm no perfil das pessoas. Uma delas é que, para mim, fazer música é ter liberdade para a fazer. Não me vêm cá dizer tem que fazer assim ou tem que fazer assado; já nessa altura pensava da mesma maneira e continuo a pensar. A música para mim é como se fosse um recreio, um espaço em que só entram as pessoas que eu gosto e com quem eu gosto de estar.
Apesar disso, és bastante relaxado quanto à receção da tua música por parte do público…
Não sei, talvez porque ao princípio a música começou por ser um hobby para mim, em paralelo com o trabalho que tinha, e hoje em dia vivo da música já há uns anos. Acho que as pessoas não devem levar as coisas demasiado a sério, pelo menos aquelas que gostam de fazer. Por exemplo, a minha filha mais velha sofre bué com os testes. Eu já não me lembro de fazer testes no liceu, não me lembro da importância que eles tiveram! Ou seja, acho que é fixe estudar para os testes, mas não pôr um peso gigante nesse tipo de coisas. Quer dizer, não é que um gajo goste de fazer testes, mas no caso da música, uma coisa que tu gostes, opá, levar isso de uma maneira descontraída. Porque muitas vezes, lembro-me de nos anos 90 passar 24 horas sobre 24 horas a falar sobre música com os meus amigos, a tocar, a ensaiar, e projetos e sonhos, e depois a montanha pariu um rato. O pessoal também tem que ter um bocado os pés assentes na terra e quando tem algum sucesso pensar que amanhã se calhar já não tem sucesso.
O teu novo álbum Guitarra Makaka – Danças a um Deus Desconhecido saiu este mês. Como foi o processo de construção?
Neste caso foi arranjar um mapa, um sítio imaginário, onde tivessem passado lá uma data de culturas. Como se tivesses achado uma ilha em que vais lá e há uma maneira de tocar guitarra. Foi esse o filme do disco.
E como arranjas um leque de sonoridades diferentes para compor um álbum apenas e só com um instrumento?
Basicamente isso tem a ver com o ouvir e ser curioso com o instrumento. Eu costumo perguntar “então e tu tocas guitarra?”, e há pessoal que me diz “epá, sou curioso”. Curioso já é metade! Há muito pessoal que eu conheço que é músico que não é nada curioso sobre o instrumento, toca aquilo que é o standard. Não procura outras formas de tocar, outras afinações, outras pessoas que tocam aquilo de uma maneira diferente. E eu sou um gajo que procuro imenso ver outro tipo de pessoas a tocar guitarra de maneira diferente; para ver gajos a tocar guitarra bem de uma maneira que já vi há não sei quanto tempo… Quer dizer, é fixe, mas não é isso que me surpreende.
Então esse processo de construção é puramente intuitivo?
Sim, é tipo miúdo: começa a tocar, a descobrir e a ligar as peças. Sempre foi assim, desde os Lulu Blind até agora. Eu não sei ler nem escrever música.
Sempre afirmaste que gostas bastante de viajar. Que aprendizagens é que retiras dessas viagens para as tuas músicas?
Podem ser vistas como pesquisas culturais. Por exemplo, eu gosto de flamenco, e ao ver pessoal a tocar flamenco eles tocam as cordas de uma maneira particular. Eu pensei “epá, vou começar a fazer assim também nas cordas”, e usei isso muito nos Dead Combo. Mas a maneira como eu faço não é a maneira tecnicamente certa. Se vier aí um mestre do flamenco vai-me dizer “epá isso não é assim que isso se faz”, mas eu estou-me bem a ralar para isso porque eu faço à minha maneira, arranjei uma maneira vendo outros tipos tocar. Basicamente o que se passa muitas vezes é um bocado isso; não é estudar as músicas de um sítio, mas é ver e ouvir que depois tenho uma ideia disso e faço à minha maneira. Neste caso, neste disco, foi a partir de uma afinação que descobri e trabalhei sobre isso.
Essas viagens conferem também uma forte componente espacial às tuas músicas. Tens sempre o cuidado de lhes conceder um visual forte?
Sim, muitas vezes faço até a capa antes de fazer o disco, que me ajuda bastante. Neste caso, da Guitarra Makaka, andei a pesquisar mapas antigos de ilhas do Pacífico e gravuras antigas que se passassem lá na selva. Depois, a partir dessas gravuras, fiz eu umas gravuras que tivessem a ver com esse universo que queria criar. Normalmente ajuda-me sempre bastante isso. Sou um gajo capaz de pegar numa fotografia, como fiz no Guitarra 66, que peguei numa fotografia da minha mulher em São Tomé, olhar para essa fotografia e fazer uma música. Uma vez lembro-me de ver na António Arroio o Carlos Paredes tocar sobre um quadro do Monet, que é uma lavadeira, e ele ia tentar passar na guitarra aquele movimento da mulher de lavar a roupa que estava no quadro.
O que é que te fez ter tanta atenção ao campo visual da música?
Sempre gostei desde miúdo de capas de discos, da imagem da música. Sou um gajo que tanto gosto de tocar ao vivo como gosto de ver concertos. Gosto de estar envolvido nesse universo. Por acaso sou músico, mas se não fosse tentaria estar envolvido de outra maneira, fazer rádio, jornalismo ou fotografia, porque gosto.
O segundo álbum a solo de Tó Trips – Guitarra Makaka – Danças a um Deus Desconhecido – foi lançado dia 6 de abril e tem atuação confirmada na edição deste ano do Bons Sons. Lê aqui a crítica do Espalha-Factos ao seu novo álbum.
Fotografias de Ana Margarida Almeida.